Representações Sociais da Saúde, da Doença e dos Praticantes da Arte Médica nos Provérbios em Língua Portuguesa

Autor: 
Luís Graça

Os provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa deveriam decididamente merecer um outro estudo como objectos de investigação científica (sociolinguística, semiológica, histórica, antropológica, sociológica, etc.), para além da sua simples recolha sistemática (por ex., Machado, 1996) ou do seu embrionário tratamento em termos de categorização temática (por ex., Gomes, 1974; Joaquim, 1983; Costa, 1999).

Pondo de lado questões como a sua origem, a sua historicidade, a sua função ideológica, o seu modo de produção e reprodução, etc., vamos limitarmo-nos aqui a analisá-los enquanto representações sociais tanto da saúde e da doença como  dos praticantes da arte médica (Herzlich e Pierret, 1984; Graça, 1996).

Gomes (1974. 5) define o conceito de lugar comum como "estrutura frásica, decorada, fossilizada e envelhecida". Machado (1996), em O Grande Livros dos Provérbios, não perde tempo a fazer a distinção entre os muitos sinónimos que é habitual a associar-se ao termo provérbio (por ex., adágio, aforismo, anexim, apotegma, axioma, ditado, dito, dito sentencioso, dizer, exemplo, máxima, parémia, preceito, prolóquio, refrão, rifrão, sentença). Para nós, essa distinção também é algo bizantina, devendo ser remetida aos eruditos da língua portuguesa.

O Dicionário Houaiss da Língua Portugesa (Lisboa, 2003) define provérbio como (i) uma frase curta, (ii) geralmente de origem popular, (iii) frequentemente com ritmo e rima, (iv) rica em imagens, (v) sintetizando um conceito a respeito da realidade, uma regra social ou uma normal moral.

Um dos nossos pressupostos, seguindo Gomes (1974), é o de que muitos deles teriam uma matriz ideológica cristã-feudal, indissoluvelmente ligada à ruralidade e à oralidade, por um lado, mas também à cristandade, como um todo. Aliás, muitos deles são comuns às principais línguas europeias, em particular às de origem latina.

Uma das suas particularidades ou originalidades é a forma de expressão: em poucas palavras (i) resume-se uma ideia-força, por vezes em termos antinómicos ("Deus dá o mal e a mezinha"); além disso, (ii) são fáceis de decorar ("Espírito são em corpo são"); têm, por vezes um claro objectivo de (iii) crítica  social ("Os erros do médico, a terra os come"); ou um simplesmente  um (iv) propósito didáctico  ("O mal do olho coça-se com o cotovelo"),   (v) moralizante ("À custa do doente come toda a gente") ou (vi) filosófico ("Queres conhecer o teu corpo? Mata o teu porco").

Enquanto parte de uma arqueologia da língua e do saber e, portanto da nossa própria cultura (Braga, 1986), os provérbios parecem-nos constituir um material no mínimo interessante para o estudo não só da (i) história das mentalidades como até da (ii) emergência dos modernos sistemas, políticas, profissões e práticas de saúde (Mira, 1947; Barbosa, 1984; Goff e Sournia, 1985; Ferreira, 1990; Lemos, 1991; Barbaut, 1991; Cosmascini, 1995; Geremeck, 1995; Sournia, 1995; Graça, 1994, 1996, 1997 e 1999).

Além do mais, há um grande défice da contribuição antropossociológica para a formação pré e pós-graduada dos nossos profissionais de saúde, não só dos nossos médicos e enfermeiros como dos gestores de serviços de saúde. Por exemplo, de há muito que é reconhecida a necessidade de se desenvolver a "sensibilidade cultural" dos  médicos de medicina geral e familiar (Barbosa, 1984). Por outro lado, só muito lenta e tardiamente as nossas faculdades de medicina e as nossas escolas de enfermagem se têm aberto para o contribuinte das ciências sociais, em particular da história, da sociologia e da antropologia.

Daí que o presente texto possa ser visto, também, como uma proposta (modesta) para repensarmos a história da saúde, da doença e da medicina em Portugal , ainda largamente dominada pelo e pelo etnocentrismo (Mira, 1947; Ferreira, 1990; Lemos, 1991).

É hoje relativamente pacífica a ideia de que (i) não há só uma medicina (ii) nem um só modelo etiológico de saúde/doença. J. Ch. Sournia, conhecido médico francês e historiador da medicina, relativiza a pretensa universalidade da medicina (ocidental), pondo o acento tónico naquilo que é, por essência, o acto médico, desde a Grécia Antiga até às nossas actuais sociedades da informação:

"O acto médico coloca uma pessoa que se considera doente na presença de outra à qual atribui poder e conhecimentos. Nenhuma destas circunstâncias pode escapar à história: o desejo de ser tratado é justificado por uma dor ou uma anomalia na aparência ou no funcionamento do corpo, cuja apreciação varia de acordo com as épocas, as culturas, as sociedades e as religiões", escreve J. Ch. Sournia, na sua História da Medicina (Sournia, 1995. 7. Itálicos meus).

Muitos destes provérbios e expressões idiomáticas da língua portuguesa devem ser tratados como verdadeiros  "fósseis" da filosofia de senso comum. Todos eles  fazem parte  do nosso património cultural mas alguns deles ainda são verdadeiros "fósseis vivos". No mínimo, veiculam representações sociais (Vala, 2002) da saúde, da doença, da dor, da morte e da medicina e dos seus praticantes,  que ainda hoje sobrevivem sob a forma de estereótipos, preconceitos e teorias espontâneas, e que às vezes emergem, aqui e ali, no discurso e na prática dos actores.

Alguns, inclusive, são verdadeiras jóias do pensamento sincrético (tal como alguns dos graffiti que, teimosamente, provocatoriamente, cobrem muros e paredes das nossas cidades). Pensamos que uma parte deste património cultural pode e deve ser recuperadas por aqueles de nós que lutam pelo triunfo de uma nova saúde pública. Alguns destes provérbios podem inclusive ser usados no âmbito da educação e da promoção da saúde, nomeadamente aqueles que estão relacionados com factores de risco e factores protectores da saúde.

Vou exemplificar alguns destes pontos de vista, através da análise, meramente exploratória, de um primeiro corpus de provérbios portugueses que está longe de ser exaustivo e sistemático: no essencial, baseia-se nas recolhas feitas por Gomes (19974) e Machado (1996); há outras fontes avulsas (incluindo inúmeros sites na Internet) que, por economia de espaço e de tempo, não vou aqui referir.

Machado (1996) reuniu mais de 26 mil entradas, organizadas por ordem alfabética. Nalguns casos, é referida a mais antiga documentação da sua origem que o autor conseguiu obter, anterior ao Séc. XIX. Por outro lado, Costa (1999) compilou e classificou em termos temáticos mais de 40 mil provérbios, num paciente trabalho digno de monge, ao longo de toda uma vida.

Diga-se, por fim, que é discutível o estatuto de provérbio, português e de origem popular, que é atribuído a um ou outro dos objectos seleccionados.  Alguns são de origem bíblica, latina e erudita. Não vamos, porém, perder tempo com essa discussão. Outros confundem-se com o calão usado pelas classes laboriosas. Por muito que isso possa ferir algumas sensibilidades, entendemos que não tínhamos o direito, enquanto estudiosos destes materiais significantes, de os amputar, censurar ou suavizar... O que importa é a sua apropriação pelos falantes da língua portuguesa, o seu uso mais ou menos socialmente alargado e historicamente documentado.

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