Relatório Primavera 2015

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Acesso aos cuidados de saúde. Um direito em risco?

Em Portugal a saúde tem a dignidade de ser considerada na Constituição da República (CR), no capítulo dos direitos e deveres sociais (Capítulo II). Aí se afirma que “todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover” (CR, artº 64, nº 1), balanceando-se assim as responsabilidades do Estado, através do dever de proteção, com as responsabilidades individuais, através do dever de defender e promover a saúde. O Estado assume o seu dever garantindo “o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica” (CR, artº 64, nº3, al. a). O acesso aos cuidados de saúde constitui-se assim como a forma de o Estado garantir aos cidadãos o direito à saúde.

Apesar da importância que lhe é atribuída na CR pode sempre considerar-se que tempos excepcionais exigem medidas excepcionais o que, em tese, poderia justificar que este dever do Estado sofresse as necessárias adaptações em função, por exemplo, da crise que nos tem atingido nos últimos anos. Ora este raciocínio tem dois problemas. O primeiro é da ordem dos princípios. Ou seja, se de algum modo limitamos um direito por razões que não as do respeito pelo direito dos nossos semelhantes, quais são as fronteiras desse limite? O segundo é de natureza mais pragmática. De acordo com a evidência que se tem vindo a acumular uma crise como a que temos vindo a atravessar ultrapassa-se mais depressa e melhor com uma população saudável. Tal exige que em tempos de crise se invista na saúde como forma de capacitar melhor os cidadãos e de a ultrapassar saindo da mesma com mais competências que as que se tinha antes. É também neste sentido que apontam as diversas recomendações dos organismos internacionais, como profusamente referimos ao longo deste Relatório. Todavia, esta crise ocorre num momento muito particular da nossa história no qual se conjugam uma transição demográfica com uma transição epidemiológica. A primeira caracteriza-se pela passagem de uma sociedade jovem, com um perfil demográfico em forma de pirâmide com base bem alargada, para uma outra envelhecida, na qual este perfil mais se assemelha a um sino com base estreita e topo alargado. Esta transição tem sido agravada pela forma como a crise tem sido gerida, na medida em que esta tem forçado a emigração dos mais jovens. A segunda (i.e., transição epidemiológica) caracteriza-se pela passagem de um perfil predominante de doenças infecto-contagiosas para um outro de doenças crónico-degenerativas. Ora esta conjugação de fenómenos coloca-nos perante uma crise na original acepção da palavra, ou seja, um momento que põe à prova a nossa faculdade de distinguir, escolher, julgar, decidir e agir. A crise surge assim como uma oportunidade de olhar criticamente para o que tem sido feito, para a nossa nova condição e com base nisso, projetarmo-nos no futuro dotados de instrumentos e de competências mais adequadas às novas circunstâncias. 

Equacionar o acesso aos cuidados de saúde nesta conjugação de ocorrências obriga-nos não só a abordá-lo como uma forma de responder adequadamente a uma crise financeira e económica, mas antes a vê-lo de forma mais radical como forma de responder de forma duradoura às profundas transformações que atravessamos. Para que tal seja possível precisamos estar municiados com uma capacidade de monitorização que nos permita um acompanhamento, mas acima de tudo uma capacidade de decisão devidamente fundamentada e empiricamente sustentada. Tal não é função de uma única organização mas o Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS) tem-se esforçado ao longo dos últimos 15 anos por contribuir para aqueles objetivos através da publicação regular dos seus Relatórios de Primavera, desiderato que no corrente ano mais uma vez cumprimos. Conscientes da responsabilidade social da nossa função, reafirmamos a intenção de o continuar a fazer melhorando cada vez mais a nossa capacidade de análise. Para que tal seja possível, reafirmamos também o nosso estatuto de organização autónoma e independente, assente numa rede de investigadores de diversas origens disciplinares e profissionais e oriundos de contextos diversos (académicos e clínicos) espalhados pelo país. Mas é preciso mais do que isto. Precisamos cada vez mais que nos seja facultado acesso às diversas bases de dados existentes nos diferente organismos do Ministério da Saúde e outros com ele relacionados, para desse modo proporcionarmos análises mais úteis porque empiricamente baseadas na nossa realidade. Precisamos também que o OPSS passe à fase seguinte do seu desenvolvimento sendo encarado como uma organização essencial e parceira em qualquer sociedade desenvolvida e seja por isso dotado de meios que lhe permitam cumprir as suas funções com autonomia e independência. Desenvolvemos por isso ao longo do último ano um conjunto de contactos com diversas estruturas relacionadas com a saúde com o objetivo de protocolarmos as nossas relações e normalizarmos as condições de acesso às bases de dados numa perspectiva plurianual, conjugando interesses do OPSS e das estruturas da saúde envolvidas. Aguardamos concretização das intenções declaradas. Falta garantir os meios que nos permitam cumprir com mais dignidade as nossas funções. Enquanto tal, apresentamos mais um Relatório de Primavera o qual, pelas razões atrás expostas, se preocupa particularmente com o acesso aos cuidados de saúde enquanto forma de concretizar o direito à saúde. Para o efeito e com recurso a um considerável número de grupos observacionais, procedemos a uma análise, necessariamente incompleta, mas equacionando algumas das dimensões que consideramos mais relevantes. Assim, após um enquadramento inicial e geral da temática do acesso aos cuidados de saúde, apresentamos ainda análises mais aprofundadas em áreas relevantes como sejam, a política do medicamento, saúde mental, segurança do doente e autocuidado. Terminamos com uma síntese das principais conclusões de cada uma das análises e ao mesmo tempo com um conjunto de recomendações que se afiguram pertinentes face às conclusões apresentadas. Este é o nosso contributo para a discussão de tão fundamental temática, prometendo desde já que voltaremos ao tema. 

Coordenação: Manuel Lopes, Felismina Mendes, Sofia Oliveira Martins, Pedro Lopes Ferreira 

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