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Evolução do sistema de saúde

É importante conhecer a evolução do sistema de saúde português num passado mais recente – ajuda-nos a compreender melhor os factores que mais influem sobre o seu desenvolvimento e a sua configuração actual.

Durante o último quarto de século, Portugal sofreu sucessivamente, em períodos de tempo particularmente curtos, transformações de importância transcendente: democratização e descolonização (1974), entrada na CEE (1985) e integração na União Monetária Europeia (2000), num ambiente de rápida transição de paradigma tecnológico.

Serão considerados cinco períodos distintos, que correspondem, geralmente, a cinco agendas políticas:

  1. antes dos anos 70
  2. do início dos anos 70 a 1985 – estabelecimento e expansão do Serviço Nacional de Saúde (SNS)
  3. de 85 a 95 – regionalização do SNS e novo papel para o sector privado
  4. de 95 a 2002 - uma “nova gestão pública - new public management” para o SNS

Ao longo dos últimos 30 anos pode ser claramente identificado um esforço sustentado para melhorar a saúde e os serviços de saúde. Em larga media, estes esforços consistiram no aumento do financiamento da saúde, na expansão dos serviços de saúde – quer em termos de instalações quer na adopção de novas tecnologias médicas e de informação – melhoria do acesso a medicamentos e esforços contínuos de melhorar a organização e gestão do SNS. No entanto, reformas bem intencionadas foram muito frequentemente implementadas de forma incompleta, quer por limitações de gestão, resistência à mudança ou descontinuidade política. De facto, ao longo deste período de tempo, foi frequentemente observado que, no mesmo ciclo político, com o mesmo primeiro ministro, a mudança de equipas ministeriais levou a alterações substanciais nas agendas políticas.

O sistema de saúde português antes de 1970

No inicio dos anos 70 Portugal apresentava indicadores sócio-económicos e de saúde muito desfavoráveis no contexto da Europa Ocidental de então: uma taxa de mortalidade infantil de 58.6 (5.0 em 2001), aproximadamente 8.000 médicos (à volta de 33.000 em 2001, com um pequeno incremento populacional ao longo destes 30 anos), 37% de partos hospitalares (99% em 2001).

O sistema de saúde Português estava muito fragmentado: alguns grandes hospitais do Estado, uma extensa rede de hospitais das Misericórdias, postos médicos dos Serviços Médico Sociais da Previdência; Serviços de Saúde Pública (centros de saúde a partir de 1971); médicos municipais; serviços especializados para a saúde materno-infantil, tuberculose e as doenças psiquiátricas; sector privado especialmente desenvolvido na área do ambulatório.

A capacidade de financiar os serviços públicos da saúde era muito limitada - a despesa com a saúde era de 2,8% do PIB, em 1970.

As profissões da saúde, principalmente médicos, adaptavam-se às limitações económicas no sector e à debilidade financeira das instituições públicas, acumulando diferentes ocupações, de forma a conseguir um nível de remuneração e de satisfação profissional aceitável.

Estabelecimento e expansão do Serviço Nacional de Saúde (1971-1985):

A reforma do sistema de saúde e da assistência, legislada em 1971 (conhecida como “a reforma de Gonçalves Ferreira”), que incluiu o estabelecimento dos “Centos de Saúde”, foi concebida no espírito daquilo que, 7 anos mais tarde, vem a ser declarado, em Alma Ata, como “cuidados de saúde primários”. Apesar de uma implementação limitada, forneceu a base para o futuro Serviço Nacional de Saúde.

A revolução democrática do 25 de Abril de 1974 e a Constituição de 1976 mudaram Portugal profundamente. Emergiram novas políticas sociais. A criação de um Serviço Nacional de Saúde foi vista como a resposta mais adequada à necessidade de uma cobertura, mais extensa e equitativa, de serviços de saúde. A nova constituição estabelecia que “todos têm direito à protecção da saúde” que se realizaria “pela criação de um serviço nacional de saúde universal, geral e gratuito”. Também faz referência ao desenvolvimento económico, social e cultural de forma a assegurar e a promover a saúde. A lei do Serviço Nacional de Saúde (1979) declara que o acesso ao SNS deve ser garantido a todos os cidadãos independentemente da sua condição social ou económica. A revisão da Constituição em 1989 muda “serviço nacional de saúde” “gratuito” para “tendencialmente gratuito”. A nova lei do Serviço Nacional de Saúde também significou que o financiamento da saúde começou a provir do Orçamento Geral do Estado substituindo o financiamento com base nos fundos sociais.

A carreira médica de Clínica Geral e Familiar foi introduzida em 1980.

Os anos 70 não foram tempos fáceis para a reforma. A “crise do petróleo” teve um impacto muito negativo na economia portuguesa. Consequentemente houve limitações sérias no financiamento disponível para iniciar as reformas sociais. O SNS tornou-se uma aventura sub - financiada desde o seu início. Para um país que experimentava o início da democracia e o processo da descolonização, as exigências de gestão do SNS foram um desafio imenso. Após uma década de implementação dos centros de saúde (centros de saúde de 1ª geração) perdeu-se a oportunidade de lhes fornecer o desenvolvimento organizacional necessário para melhorar a acessibilidade e integrar a nova carreira médica (medicina geral e familiar), em 1984/5, quando foram fundidos com os Serviços Médico - Sociais da Previdência. Os então centros de saúde (1ª geração) com actividades predominantes na área da saúde pública foram fundidos com os postos das caixas de Previdência que faziam medicina curativa, tornando-se no que se designa por centros de saúde de 2ª geração. Como os salários continuavam a ser baixos para os profissionais de saúde, muito poucos se dedicavam exclusivamente ao SNS.

Houve, de facto, várias limitações “genéticas” para o SNS português.

Regionalização do SNS e novo papel para o sector privado (1985-1995)

Esta década foi marcada por uma estabilidade política sem precedentes desde a revolução de Abril. Portugal tornou-se membro da Comunidade Económica Europeia (agora União Europeia) em 1986 e tornou-se possível o financiamento europeu para desenvolvimento de infra-estruturas sociais e económicas. Isto incluiu o sector da saúde. As instalações e equipamentos do SNS continuaram a expandir-se. Uma proporção crescente da riqueza do país era destinada à saúde.

Tornou-se clara a necessidade de alterações de gestão e organizacionais para melhorar a efectividade e eficiência do sector da saúde. As preocupações mais evidentes, na agenda política, que emergiram ao longo desta década foram:

  • de SNS a rede de cuidados de saúde. A legislação de 1979 ignorou, em larga medida, a existência de um sector social e privado importante na saúde. A legislação de 1990 (Lei de bases da saúde) definiu o papel do SNS num contexto mais alargado de sistema de saúde. 
  • um novo papel para o sector privado. Esta nova legislação também se destinava a estimular o sector privado na área da saúde, incluindo a gestão privada de instituições de saúde. De facto, em 1995, a gestão de um hospital novo, de 600 camas, próximo de Lisboa, foi contratada a um consórcio privado. Esta modalidade não voltou a ser aplicada nos 6 anos seguintes.
  • regionalização e integração do SNS. Em 1993 foram estabelecidas 5 regiões administrativas de saúde (Administrações Regionais de Saúde) assim como “unidades funcionais” entre hospitais e centros de saúde. Estas últimas tinham como objectivo conseguir uma melhor integração entre cuidados primários, secundários e terciários.
  • taxas moderadoras. Em 1990, o Governo introduziu taxas moderadoras no SNS com excepção para grupos de risco e economicamente desfavorecidos.
  • profissões de saúde: melhores salários em troca de uma maior separação entre serviços públicos e privados. Foi feita uma tentativa para estabelecer uma maior separação entre o exercício em estabelecimentos públicos e a prática privada, em troca de uma melhor remuneração. As greves médicas, prolongadas, resultaram na melhoria salarial mas com poucas contrapartidas.

A descontinuidade nas agendas políticas levou a que o impacto destas iniciativas fosse limitado.

De forma a conseguir alguma transferência do peso financeiro do sector, a lei de 1990 propôs um esquema de “opting – out” que permitia aos cidadãos moverem-se da “seguradora” pública para seguradoras privadas recebendo estas um subsídio per capita do Estado. Isto não foi implementado, aparentemente, devido à falta de interesse das seguradoras.

Outras alterações incluíram o início do desenvolvimento de um sistema de informação baseado nos “Grupos de Diagnóstico Homogéneo” para a gestão hospitalar.

As limitações no planeamento e gestão de recursos humanos resultaram na importação, 10 anos mais tarde, de médicos e enfermeiros, particularmente de Espanha.

A abordagem segundo a “nova gestão pública” para a reforma do SNS (1995-2001)

Após 10 anos de considerável estabilidade política – um governo PSD com maioria parlamentar em 8 destes 10 anos – iniciou-se um novo ciclo político no final de 1995.

Nos 6 anos seguintes o país é, novamente, governado por um governo de um só partido (PS). No entanto, ao contrário do que aconteceu no ciclo político prévio, estes governos foram suportados por uma minoria parlamentar que escolheu não promover coligações políticas ou alianças necessárias para promover uma maior estabilidade política. No Parlamento, o suporte ao Governo era negociado caso a caso. Este ambiente político não era muito propício a grandes reformas.

Neste contexto foi adoptado um processo de reforma cauteloso centrado em princípios da “nova gestão pública - new public management” aplicada à reforma do SNS. Isto pode ser sumariado de seguinte forma:

  • Estratégia de saúde. De 1996 a 1999 uma ampla “Estratégia para a viragem do século” foi desenvolvida. Esta estratégia incluía metas de 5 e 10 anos para ganhos em saúde e desenvolvimento de serviços. A implementação e monitorização desta estratégia foi descontinuada quando uma nova equipa ministerial entrou em funções no final de 1999.
  • empresarialização pública no desenvolvimento dos hospitais e centros de saúde. Foi decidido, em 1996, que todos os hospitais deveriam adoptar novas formas de gestão, mais flexível e autónoma, de “empresas públicas”. De 1996 a 1999 3 novos hospitais adoptaram novas formas de gestão. Durante este período iniciaram-se uma série de projectos experimentais na reorganização dos cuidados de saúde primários. Os projectos Alfa são exemplos destas experiências em que equipas de médicos, enfermeiros e administrativos, com um projecto de trabalho negociado com a administração, exerciam a sua actividade, muitas vezes em instalações mais próximas das comunidades. Estas experiências foram avaliadas positivamente e estimularam a adopção de sistemas de remuneração associada ao desempenho, numa base experimental, novas práticas de contratualização, critérios de qualidade e infra estruturas de informação. Estas experiências também inspiraram a legislação de 1999 que via os centros de saúde como organizações em rede. Este processo foi interrompido em 2000.
  • desenvolvimento da qualidade. Uma nova abordagem para promover a qualidade no sector da saúde foi desenhada e implementada. Isto incluiu a criação do Instituto da Qualidade em Saúde
  • politíca de recursos humanos.  Em 1998, o Conselho de Ministros adoptou uma resolução criando mais duas escolas de medicina públicas, reforçando o ensino da enfermagem, promovendo mais capacidade de investigação e melhor coordenação entre as instituições onde se faz a formação pré e pós graduada dos profissionais de saúde. A implementação desta resolução nos três anos seguintes foi incompleta.
  • melhorar as infra-estruturas da saúde pública. Foram criados 5 centros Regionais de Saúde Pública, desde 1999, com o objectivo de reforçar a saúde pública ao nível regional e local através de fornecimento de perícia em epidemiologia e liderança na promoção e gestão da saúde.
  • reengenharia do sistema – distinção entre o financiamento e a prestação de cuidados de saúde; sistemas locais de saúde. Em 1996, as Administrações Regionais de Saúde iniciaram um processo que levou ao estabelecimento das “Agências de contratualização”. Estas destinavam-se a desenvolver perícia na análise, negociação e decisão da distribuição de recursos financeiros pelos serviços de saúde, desenvolvendo instrumentos de informação e monitorização para esse fim. Em 1999 foi aprovada legislação para suportar a melhoria de coordenação das actividades de saúde ao nível local (sistemas locais de saúde). Esta legislação não foi implementada.

Foram também implementados programas para reduzir as listas de espera cirúrgicas e para introduzir o cartão do utente. Desde 1997 que o método clássico de financiamento retrospectivo dos hospitais foi parcialmente alterado para incorporar elementos de financiamento prospectivo, relacionado com actividade (baseados nos Grupos de Diagnóstico Homogéneo). Foram tomadas algumas iniciativas para regular o mercado farmacêutico, incluindo a promoção de medicamentos genéricos. Em 2001 o Ministro da Saúde estabeleceu normas formais para o desenvolvimento de Planos Directores Regionais para os hospitais e centros de saúde do Serviço Nacional de Saúde. Simultaneamente, anunciou planos de estabelecer Parcerias Público-Privado (PPP) para a construção de novos hospitais.

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